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‘Por uma geografia cidadã: por uma epistemologia da existência’, texto fabuloso do professor Milton Santos

 


Vou começar como faço sempre, dizendo o seguinte: as aulas fáceis não têm o menor interesse; os livros fáceis não têm o menor interesse; as conferências fáceis são uma chantagem em relação aos que se dispuseram a escutá-las. Estou dizendo isto com o temor de que para certos dos presentes algo do que vou dizer possivelmente venha a parecer complicado. Estou desde logo solicitando-lhes a tolerância, mas também a atenção.

O tema que me foi encomendando é “Por Uma Geografia Cidadã”. Tomei a liberdade de atribuir-lhe um subtítulo e esta conferência vai se chamar “Por Uma Geografia Cidadã. Por uma Epistemologia da Existência”. Esta conferência vai se processar em quatro tempos ou pontos. Primeiro ponto: Por Uma Geografia Cidadã – por que uma Geografia Cidadã? Em outras palavras, para que trabalhamos intelectualmente hoje? Pela necessidade da volta ao Homem. Segundo ponto: Geografias e Geografia, Espaços Adjetivados e Espaço Banal. Já falamos nisto em outro lugar; voltaremos a isto nesta tarde. A discussão correta não é em torno da Geografia, mas do espaço, isto é, em torno do substantivo e do constitucional que é o espaço e não a Geografia. Seria uma discussão sobre o valorativo e não sobre o adjetivo. Terceiro ponto: O Cotidiano. Significa geografizar esta noção de cotidiano que os geógrafos frequentemente incorporam a partir da Sociologia, quando é possível fazê-lo a partir do próprio espaço, ou seja, da Geografia, o que nos deveria permitir enriquecer os enfoques sociológicos. Quarto ponto: Uma Epistemologia da Existência. Em outras palavras, trata-se da reconstrução do método através da vida, isto é, do Homem vivendo.

Por uma Geografia cidadã _ Por que uma Geografia cidadã?

Como primeira observação, lembremos que a cidadania se dá segundo diversos níveis. Sobretudo neste país, todos não são igualmente cidadãos, havendo os que nem são cidadãos e havendo os que não querem ser cidadãos, aqueles que buscam privilégios e não direitos.

Duas questões aqui se colocam do ponto de vista da nossa disciplina: a primeira é como ajudar a construir a cidadania através da Geografia e a segunda é como construir a Geografia através da ideia de cidadania, tarefas inseparáveis. O que seria esta geografia do cidadão? Seria uma geografia engajada? Cabe conversar um pouco sobre essa palavra. Quando utilizamos a expressão “geografia engajada”, estaremos falando de uma geografia engajada a priori, decidida a encetar a tarefa da crítica, mesmo antes de concluir a tarefa da análise. Mas isto pode ser apenas uma geografia com um discurso vazio e vadio, incapaz de oferecer aqueles instrumentos analíticos de que necessitamos para enfrentar a dura tarefa de interpretar a realidade social.

A análise tem que ser pertinente. Análise pertinente significa que o analista sabe claramente o que está fazendo. Aliás, a dificuldade da participação da Geografia nas interdisciplinaridades vem do fato de que raramente uma certa geografia sabe o que está fazendo. Se os próprios geógrafos não são capazes de oferecer às outras disciplinas uma visão clara da sua pertinência, todo debate se torna impossível. O debate só é possível quando o que fala ou escreve oferece claramente o sistema que preside a indagação feita à realidade. Ora, esta geografia do cidadão, como a geografia taut court, necessita de uma análise fundada nessa noção de pertinência.

Poderia também fazer uma outra pergunta: será que a geografia do cidadão se opõe à geografia dos experts? Creio que sim. E aí perguntaria, em adição, se pode haver um expert generalista? Pode ser que haja. O problema com o expert, pessoa geralmente externa às coletividades às quais vem estudar, é a sua freqüente incapacidade em participar do cotidiano e em perceber, sem partis pris, o funcionamento político das coletividades. Na medida em que, a partir do cotidiano, o lugar hoje se impõe como dado central das pesquisas em ciências sociais, daí vem a fragilidade da geografia dos experts.

Não esqueçamos esta verdade cristalina: o valor do homem depende do lugar onde está. Nossa dificuldade em relação às outras ciências sociais é exatamente esta, porque o lugar é praticamente desconhecido de disciplinas sociais, como a economia, a sociologia e outras. É que a noção de espaço praticamente escapa a estas disciplinas. O lugar deve ser considerado como um conjunto de objetos e, ao mesmo tempo, o receptáculo de um feixe de determinações, não apenas de algumas, como na economia (determinações econômicas); ou na sociologia (determinações sociais); ou na antropologia (determinações culturais); ou nas ciências políticas (determinações políticas); mas de todas as determinações. Então, a geografia do cidadão começa por recusar o economicismo triunfante, que faz do economista não um especialista da sociedade, mas um servo da técnica, um trabalhador em benefício da administração dos negócios aos quais as técnicas se aplicam, como se fossem absolutas, sem necessidade de relativizá-las.

A geografia do cidadão sugere, também, o abandono do sociologismo simplório. De uma maneira geral, os sociólogos não oferecem metáforas espaciais, lemos que agradecer-lhes, já que as metáforas chamam a atenção para aspectos das questões e os põem em relevo. Só que as metáforas não constituem sistema e, por conseguinte, não ajudam na produção de conceitos e nem de teorias, fora das respectivas disciplinas.

 

Geografia e geografias, espaços adjetivados e espaço banal

As diversas geografias, isto é, a geografia dos transportes, a geografia do comércio. a geografia da população, a geografia da indústria, etc … são parcialidades que levam em conta aspectos isolados do acontecer, às vezes como se fosse possível, além de isolar
para a análise, fazê-lo, também, para síntese, o que é um grande risco. Estas espacializações singulares, como os transportes que fluem numa área, ou como o comércio, alteram o significado de uma região. Não é o espaço que se estuda assim, mas sim fragmentos dele. Quando me refiro à realização da economia, da sociedade, da cultura, da politica, o que eu tenho são espaços adjetivados, o espaço econômico, o espaço cultural, o espaço político, o espaço social, mas o que quero entender e preciso entender, é o espaço banal. O espaço banal é o espaço de todos os alcances, de todas as determinações; o espaço banal é o espaço de todos os homens, não importam as suas diferenças; o espaço banal é o espaço de todas as instituições, não importa a sua força; o espaço banal é o espaço de todas as empresas, não importa o seu poder. O espaço desta cidade de Passo Fundo, onde todas as pessoas – não importa a sua riqueza, a sua origem – participam, onde todas as instituições presentes participam da vida, assim como todas as empresas presentes, a isto se chama o espaço banal. E é este espaço banal que é o espaço da Geografia, diferente, pois, dos espaços adjetivados. E existe este espaço banal? Posso significá-lo através de um discurso como um dado objetivo?

O que é essencial, a partir desse espaço banal, é encontrar a forma de analisá-lo, isto é, de chegar à produção dos conceitos que permitam dividi-lo em pedaços, autorizando uma correta tarefa de análise. Diante de um sociólogo, de um economista, de um cientista político, de um químico, etc … , podemos dizer que a Geografia estuda o espaço, mas a nós mesmos é insuficiente dizer isto. Porque dizer isso, entre geógrafos, significa, de alguma maneira, erigir uma tautologia em regra de trabalho, o que leva a nada. Isto é, tal esforço, puramente tautológico, deve ser substituído por um esforço analítico. Isto é, temos de encontrar os elementos suscetíveis de permitir que, diante do que estou chamando de espaço, possamos entendê-lo e, eventualmente, construir o discurso político da sua intervenção. E aí vem de novo a questão que me preocupa há alguns anos: o que interessa à Geografia, é menos a geografia e mais o espaço. Enquanto os geógrafos discutem entre eles, sobre a geo” grafia, não estão andando para lugar nenhum. O debate que permite avançar é a discussão sobre o espaço, discussão que permite descobrir quais são as subdivisões pertinentes do objeto que nos interessa.

O cotidiano

Gostaria de sugerir, para começar esta discussão do cotidiano que, por gentileza, os senhores admitissem comigo que há possibilidade de trabalhar três dimensões do homem: a dimensão da corporeidade, a dimensão da individualidade e a dimensão da socialidade. A corporeidade ou corporalidade trata da realidade do corpo do homem; realidade que avulta e se impõe, mais do que antes, com a globalização.

A outra dimensão é a dimensão da individualidade. Enquanto a corporalidade ou
corporeidade é uma dimensão objetiva que dá conta da forma com que eu me apresento e me vejo, que dá conta também das minhas virtualidades de educação, de riqueza, da minha capacidade de mobilidade, da minha localidade, da minha lugaridade, há dimensões que não são objetivas, mas subjetivas; aquelas que têm a ver com a individualidade e que conduzem a considerar os graus diversos de consciência dos homens: consciência do mundo, consciência do lugar, consciência de si, consciência do outro, consciência de nós. Todas estas formas de consciência têm que ver com a individualidade e lhe constituem gamas diferentes, tendo também que ver com a transindividualidade, isto é, com as relações entre indivíduos; relações que são uma parte das condições de produção da socialidade, isto é, do fenômeno de estar junto. Esse fenômeno de estar junto inclui o espaço e é incluído pelo espaço.

Há uma relação entre corporeidade, individualidade e socialidade. Essa relação vai também definir a cidadania. Neste país, por exemplo, a cidadania dos negros é afetada pela corporeidade. O fato de ser visto como negro já é suficiente para infernizar o portador desse corpo. Por conseguinte, a diferenciação entre “cidadanias”, dentro de uma mesma sociedade, é relacionada com a corporeidade. É evidente que há individualidades fortes, permitindo uma tomada de consciência mais ampla. É, desse modo, que há uma produção, dentro do homem, do princípio de liberdade. Isto não tem nada que ver com a cidadania, nem com o corpo do homem.

Creio que estas três dimensões ajudam o estudo do cotidiano do ponto de vista espacial Devemos ver, daqui há pouco, que o fato de estar juntos dentro de uma área contínua tem reflexos na maneira como a espacialidade se dá, como a individualidade evolui e como a corporeidade é sentida. Outras dimensões do cotidiano são, todavia. centradas numa compleição geográfica de cotidiano. O cotidiano supõe o passado como herança. O cotidiano supõe o futuro como projeto. O presente é esta estreita nesga entre o passado e o futuro e cuja definição depende das definições de passado e de futuro: desta existência do passado, da qual não nos podemos libertar porque já se deu; e desse futuro, que oferece margem para todas as nossas esperanças, exatamente porque ainda não existe. É que a base do fato é que cada um de nós são dois, oscilando entre a necessidade e a liberdade, entre o que somos e o que queremos ser, entre a dificuldade de afirmação diante das situações e a crença de que podemos ser outra coisa e de que podemos construir outra coisa. Esse duplo homem e esse duplo cotidiano nos remetem de volta às relações de corporeidade, individualidade, socialidade e espacialidade.

O cotidiano também nos põe diante de outras categorias, como a da materialidade e a da imaterialidade. O cotidiano são os dois, ele não é dado apenas pela materialidade que nos cerca. A imaterialidade também é um constrangimento às vezes mais forte de que a materialidade: essa ideia de tecnosfera e de psicosfera que andamos tentando difundir, de um lado esta esfera técnica que envolve o homem no fim do século, e, de outro, a esfera das paixões, das crenças, dos desejos, tão objetiva em nossa vida quanto objetiva é a esfera da materialidade.

Mas o cotidiano também sugere um outro par de dimensões: de um lado as normas e, de outro lado, a espontaneidade. O mundo de hoje é o mundo de normas. A propaganda do neo-liberalismo fala de desregulação, mas nunca o mundo foi tão regulado, tão normado: normas públicas, normas das empresas que se impõem por sobre ou que orientam as normas do poder público; normas formais, normas informais, normas sempre. Tudo ou quase tudo é feito a partir de normas, o que já é indicativo da tendência ao empobrecimento simbólico que estamos vivendo: esta proliferação e esta hegemonia da norma. Mas, felizmente, o cotidiano também nos apresenta possibilidades para a espontaneidade. E tanto a norma como a espontaneidade têm que ver com o espaço, com a forma como o espaço se constitui.

*Revista Prosa Verso e Arte

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